9.6.13

O gato era velho e doente e não tinha com quem ficar.


Marta Myriam Fernandes, 83 anos, 5 netos, professora orgulhosamente aposentada depois de 30 anos de honestos serviços prestados à sociedade. Foi uma boa professora, se opôs ao Golpe Militar e à ditadura, cuidou dos filhos com atenção, foi prestativa e carinhosa com os netos e estava com seus amigos quando precisavam dela. Viuva saudosa de seu honesto marido, falecido há 16 anos. Cometeu erros, traiu, foi fiel. Não se arrependia, tinha vivido bem e feito o que precisava fazer, quando julgava que o precisava fazer.

Um certo domingo à noite, depois de ter almoçado na casa de uma das filhas, vai para casa, escreve umas palavras no diário, toma um bom banho, relê algumas poesias de seu livro favorito e vai dormir.

Acorda com o sol e respira fundo. Varre a casa, mata o gato e liga para a companhia de táxi. Salta com uma mochila no aeroclube da cidade e caminha em direção ao hangar que abriga os pequenos aviões privados. Cumprimenta um grupo de pessoas um tanto mais jovens, conversam por alguns minutos e entram num avião. Ele voa alto... alto... E, de um céu azul e claro, sobre uma planície verde em degradês, salta Marta Myriam Fernandes com os olhos abertos e o coração batendo rápido.

67 segundos de queda parecem 67 segundos de queda, quando você presta bem atenção em cada um deles.


Fazer uma relação um a um dos segundos com os anos vividos conforme a senhora os rememorava seria até interessante, mas um truque um pouco barato. Além do mais, eu teria que excluir arbitrariamente 16 anos da sua vida, uma coincidência terrível justo com o tempo em que estivera sem o marido. O que é isso? Romantismo barato? Sua vida só fizera sentido até sua morte? (a vida de marta, a morte do marido). E os anos que o precederam? não foram importantes? Bem, não é o caso. E, então, por que você não escolheu que ela tivesse 67 anos no começo? ou que o salto durasse 83 segundos? ou algo no meio termo? Bem, se ela fosse muito nova, eu não conseguiria exatamente o efeito esperado, o conto (conto, isto é um conto agora?, do que você está falando?) ficaria muito mais pesado. Talvez me falte a coragem. E 83 segundos de queda já é muito inverossímil para uma senhora que não se suponha ser uma paraquedista profissional. (professional). Enfim, de qualquer jeito, a ideia de relacionar 1 ano a 1 segundo já é em si totalmente arbitrária, a unidade do ano e a unidade do segundo são artefatos históricos e linguísticos recentes na história da formação do ser humano, que nada têm a ver com o movimento da minha (ou dela, sua) memória ou da sincronia entre tempo rememorado percebido e percepção de duração física (a queda). Ou tem?...

Provavelmente não, ou pouco. Arredondemos em 64 então e sigamos adiante, que não é um número tão bom como 67 ou 83, ou mesmo o dezesseis, mas faz o serviço e gera menos polêmica. ... 63.

63 segundos de queda se parecem com 63 segundos de queda, quando você presta atenção neles.

Primeiro o coração de Marta bateu forte até que o braço começou a doer. Ela ia começar a sentir um desespero, um ataque cardíaco ou uma crise de pânico, mas rapidamente percebeu a inutilidade do projeto. Percebeu a força do vento se arrastando pelo corpo e sentiu de repente o sol Forte e Quente no rosto, mesmo com o ar frio que lhe roubava o calor. Se pudéssemos assistir a queda de Marta com óculos infravermelhos potentes e ótima resolução, em câmera superlenta, veríamos seu corpo deixando um rastro vermelho em meio ao mar azul do céu, como um cometa ( = estrela cadente) rasgando a atmosfera em direção à terra.

Em um movimento rápido, ensaiado, passa os braços por dentro das correias da mochila e se separa do paraquedas.
Braços abertos, contempla o céu, as nuvens, as montanhas, as casas e prédios à distância, o rio o campo verde
.



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