28.10.19

O caráter destrutivo, de Walter Benjamin

Poderia ocorrer a alguém que, olhando retrospectivamente para sua vida, chegasse ao reconhecimento de que quase todos os vínculos mais profundos que sofreu em si, vieram de pessoas que todos concordariam ter um “caráter destrutivo”. Ele se depararia com esse fato um dia, por acaso, talvez, e quanto mais duro fosse o choque que assim o abala, tanto maior seriam suas possibilidades para uma apresentação do caráter destrutivo.


O caráter destrutivo conhece apenas um mote: abrir espaço; apenas uma atividade: esvaziar. Sua necessidade de ar fresco e espaço livre é mais forte que qualquer ódio.
O caráter destrutivo é jovem e alegre. Pois destruir rejuvenesce, já que tira do caminho as marcas da nossa própria idade; e alegra, porque cada caminho aberto significa para o destruidor uma redução completa, uma radiciação de sua própria situação. Para uma tal imagem apolínea do destruidor conduz, em primeiro lugar, justamente, a intuição de quão monstruosamente o mundo se simplificaria, caso sua capacidade de destruição fosse posta à prova. Esse é o grande vínculo que entrelaça em concórdia tudo o que existe. Esta é uma visão que fornece ao caráter destrutivo com um espetáculo da mais profunda harmonia.
O caráter destrutivo está sempre pronto para o trabalho. É a natureza quem lhe prescreve o ritmo, ao menos indiretamente: pois ele precisa se antecipar a ela. De outra forma realizaria ela mesma a destruição.
Nenhuma imagem paira diante do caráter destrutivo. Ele tem pouca necessidades, e a menor delas seria: saber o que surge no lugar do destruído. Primeiramente, por um instante, ao menos, o espaço vazio, o lugar onde a coisa esteve, onde a vítima vivia. Aparecerá logo alguém que dele faça uso, sem o tomar para si.
O caráter destrutivo faz o seu trabalho, evita apenas o de criar. Assim como o criador busca para si a solidão, o destruidor precisa continuamente estar com outras pessoas, testemunhas de sua eficácia.
O caráter destrutivo é um sinal. Como um símbolo trigonométrico é exposto em todos os lados do ângulo, assim também ele nas conversas. Protegê-lo disso é inútil.
O caráter destrutivo não está minimamente interessado em ser compreendido. Ele encara os esforços nesse sentido como superficiais. A incompreensão não o atinge em nada. Ao contrário, ele a provoca, como também os oráculos, essas instituições destrutivas do estado, a provocavam. A fofoca, o mais pequeno-burguês de todos os fenômenos, só existe porque as pessoas não querem ser mal compreendidas. O caráter destrutivo permite-se mal compreender; ele não fomenta a fofoca.
O caráter destrutivo é inimigo do homem-estojo. O homem-estojo busca seu conforto, cuja epítome é a casa. O interior da casa é o rastro revestido com veludo que ele inscreve no mundo. O caráter destrutivo apaga até mesmo os rastros da destruição.
O caráter destrutivo está na linha de frente dos tradicionalistas. Alguns transmitem as coisas, tornando-as invioláveis e as conservando, outros as situações, tornando-as manejáveis e as liquidando. Esses são chamados de destrutivos.
O caráter destrutivo tem a consciência do homem histórico, cujo principal afeto é uma desconfiança indomável do correr das coisas, e a prontidão com que toma nota, a cada vez, de que tudo pode dar errado. Por isso o caráter destrutivo é a própria confiabilidade.
O caráter destrutivo não vê nada duradouro. Mas, por isso mesmo, enxerga por toda parte caminhos. Onde outros se deparam com muros ou montanhas, também aí ele vê um caminho. Porque ele vê um caminho em toda parte, ele também precisa remover toda parte do caminho. Nem sempre com força bruta, às vezes o faz com refinamento. Porque ele vê caminhos em toda parte, está ele mesmo sempre em uma encruzilhada. Nenhum instante pode saber o que o próximo traz. Ele deixa tudo o que existe em ruínas, não pelas ruínas, mas pelo caminho que as atravessa.
O caráter destrutivo não vive do sentimento de que a vida tem valor, mas de que o suicídio não vale a pena o esforço.


(tradução roabc)

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